segunda-feira, julho 02, 2007


Estamos no rio Sever, em Montalvão (distrito de Portalegre), na década de 1960. A senhora da fotografia é a minha avó Matilde, já depois dos 50 anos. Estava a lavar roupa e aposto que devia estar a fazer uma de três coisas enquanto esfregava: cantar, falar ou a rir-se de alguma coisa. Principalmente dela própria, a mulher que num funeral deu os parabéns à viúva, porque no constrangimento solene do velório baralhou as palavras de consolo com as de louvor. Apesar de mortificada, começou a rir descontroladamente e teve que abandonar o funeral porque não conseguia parar.

A avó Matilde nasceu em 1911, em Almoçageme, uma aldeia entalada entre a Praia Grande e a Serra de Sintra. Tinha várias irmãs e irmãos, como era costume naquele tempo, e um pai com o vício das apostas. Deu nomes de países a três filhas, só para poder apostar que a França e a Polónia eram maiores que a América. Ganhava sempre. A minha tia América era a mais nova e portanto tinha sempre alguns palmos a menos que as outras duas.

O meu bisavô tinha uma mercearia e certo dia entrou-lhe pela porta um rapaz chamado José. Era o avô Zé. Eles é que ainda não sabiam. A minha avó não engraçou muito com o rapaz, quatro anos mais velho que ela, vindo de Torres Vedras, mas acabou por lhe ganhar carinho e casou-se com ele. “Era muito boa pessoa, e eu casei-me com ele por causa disso, apesar de não estar muito apaixonada”, confessou-me ela um dia. Se o avô Zé estivesse vivo faria agora 100 anos.

Depois de casados foram para Montalvão, no Alto Alentejo, montar uma mercearia, em plena Guerra Civil espanhola. Como estavam a escassos quilómetros da fronteira, acabaram por dar comida a muitos homens e mulheres. Não cobravam nada pela ajuda nem enriqueceram com a especulação de preços no mercado negro, em tempo de escassez alimentar. “O que sai pela porta, entra pela janela”, dizia o meu avô. O tempo acabou por lhe dar razão. Juntos tiveram três filhos, um dos quais o meu pai, que nasceu roxo e sufocado, com o cordão umbilical enrolado ao pescoço. Foi em Montalvão que viveram os anos de ouro. Durante o dia fugiam do calor e à noite ouviam os Parodiantes de Lisboa na telefonia, quando o meu pai não interrompia a novela radiofónica à força de gargalhadas. Uma sala cheia de adultos em silêncio a ouvir as desgraças de uma pinga-amor provocava-lhe um riso histérico, o que perturbava a atenção dos meus avós e respectivos vizinhos, que seguiam o fio à meada num silêncio devoto. O riso tonto chegou-me aos genes desta maneira, por linhagem directa.

Mal o meu pai nasceu, a minha avó começou a dizer que só queria vê-lo entrar para a escola primária. Se lhe tivessem dito, nessa altura, que ela sobreviveria mais de 30 anos à morte do marido, que veria o filho mais novo entrar e sair de todas as escolas por onde passou e que daria abraços a cinco netos e a quatro bisnetos, tenho a certeza que se iria rir.

Não sei se passaste a linha de fronteira a rir, na sexta-feira, mas quero acreditar que sim. Obrigada por me teres deixado partilhar 30 anos de vida com os teus 96 anos de histórias. Parabéns “Matecas”, entraste aí em cima com um bilhete premiado. Até sempre.

6 comentários:

Anónimo disse...

Li sem respirar e terminei a pensar que a conhecia.

Também eu digo, depois de ler, «Parabéns, "Matecas"».

De onde quer que ela esteja a olhar para este texto, não sei se ri, mas está certamente feliz.

Um abraço.

NL

SR disse...

Obrigada. Outro abraço.

Menina Azul disse...

Também eu li sem respirar... e percebi que a conheço,ao ter tido a benção de a neta Susa fazer parte da minha vida!
PARABÉNS "MATECAS"!
É bom saber que onde quer que seja, alguém se ri para lá da vida!
UM ABRAÇO FORTE SUSA!!!
UM BEIJÃO!!!

joana disse...

Abraço apertado amiga e obrigada por partilhares este tesouro de avó!

Anónimo disse...

Que texto tão bonito, Susa.
Um beijo muito grande para ti e, claro, «Parabéns, Matecas!».


Tó(lavo).

Anónimo disse...

Eu sabia que o teu riso tinha causa profunda, mas só agora sei que o herdaste da avó Matilde. Que a lembrança das coisas bonitas que nos contaste te acompanhe sempre e ilumine a tua vida.